Boa-fé objetiva contratual

Boa-fé objetiva contratual

BOA-FÉ OBJETIVA CONTRATUAL

 

Com vistas a melhor entender a boa-fé objetiva contratual, necessário fazer uma breve incursão no contexto histórico da mesma passando pela mitigação da autonomia da vontade, bem como sobre o entendimento jurisprudencial concernente à sua aplicação.

É notório que o princípio do pacta sunt servanda, o qual impõe que os contratos entabulados devam ser respeitados em sua integralidade pelas partes, tem grande relevância para o direito contratual. Contudo, tal princípio não reflete os anseios vividos pela nova realidade socioeconômica no Brasil atual, principalmente após a Constituição de 1988.

O princípio do pacta sunt servanda tem suas bases firmadas no século XIX, quando o liberalismo reinou absoluto, e, conforme ensina Sílvio Rodrigues, “[...] justifica o princípio na idéia de que, se as partes alienaram livremente sua liberdade, devem cumprir o prometido, ainda que daí lhes advenha considerável prejuízo”[1]. Não havia, até então, qualquer limite à aplicação do princípio às relações contratuais.

Com as conquistas socioeconômicas surgidas no século XX, quando o liberalismo deixou de imperar absoluto, tendeu-se a uma flexibilização do princípio da pacta sunt servanda, com a inserção de novos conceitos de justiça e de equidade contratual.

Ezequiel Morais[2], em sua obra A Boa-Fé Objetiva Pré-Contratual – Deveres anexos de Conduta – descreveu bem a transformação ocorrida com o advento das conquistas sociais no século XX:

“Aquele formato de codificação sem cláusulas abertas, que refletia um sistema fechado e foi útil nos séculos XVIII e XIX, não mais satisfazia às necessidades da coletividade, surgidas no liminar do séc. XX e acentuadas agora, no início do séc. XXI. Por tais razões, os novos conceitos de justiça e de equidade contratual começaram a modificar as antiquadas interpretações dos princípio da boa-fé e da autonomia da vontade. Desencadeou-se, por conseguinte, uma verdadeira revolução na ordem principiológica – ou na sua interpretação.”

Nota-se, portanto, que, com as conquistas socioeconômicas, principalmente aquelas positivadas na Carta Magna de 1988, alterou-se a forma de interpretação dos contratos, mitigando os antigos princípios com base na dignidade da pessoa humana, na função social do contrato e na boa-fé objetiva.

A Constituição Federal de 1988 concedeu grande ênfase às questões sociais, até então deixadas de lado, tais como a buscas pela efetivação da justiça social e contratual, do solidarismo, da dignidade da pessoa humana e da função social da propriedade, o que, de forma inconteste, atingiu diretamente os princípios contratuais até então vigentes, principalmente a autonomia da vontade e o pacta sunt servanda.

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a legislação infraconstitucional, já com o viés do solidarismo positivado na carta magna, deu bastante ênfase aos princípios ditos sociais, especialmente, com relação aos contratos, à função social e à boa-fé objetiva.

Exemplo claro dessa transformação, foi o Código de Defesa do Consumidor, aprovado em 1990, que positivou diversos princípios contratuais, com vistas à proteção de direitos sociais, e ampla proteção à parte hipossuficiente.

O Código Civil Brasileiro, apesar de bem mais tímido do que o CDC em relação aos princípios de proteção social, também não deixou de seguir o novo viés constitucional e trouxe cláusulas abertas, com princípios contratuais voltados à satisfação da nova ordem jurídica.

Lecionando sobre o tema, Cláudio Luiz Bueno de Godoy[3], ao abordar a necessidade de análise dos contratos sob o novo viés, previu a inserção da normatização civil em um paradigma contemporâneo, que prestigia os valores sociais e o valor fundante da pessoa humana, tendo em vista que são a origem, o centro e a finalidade da ordenação.

Verifica-se, portanto, que a mais recente legislação pátria sobre o direito contratual, prestigiou, como limitadores do antigo princípio da autonomia da vontade, os princípios da função social e da boa-fé objetiva.

Sobre a aplicação do princípio da boa-fé objetiva à relação contratual, Ezequiel Morais leciona:

“[...] o princípio da boa-fé objetiva [por meio da função corretora] e seus deveres anexos visam restabelecer, ou estabelecer, o equilíbrio contratual (contractualequilibrium) com suporte na solidariedade, na cooperação mútua, na função social – cláusula geral asseguradora de trocas justas e úteis – e nos princípios da equivalência das prestações, da conservação dos pactos.”[4]

Denota-se, portanto, que o princípio da boa-fé objetiva tem a finalidade de moldar o contrato à real vontade dos contratantes, o qual deve ser interpretado de acordo não só com o que está positivado, mas também com a intenção das partes antes, durante e após a relação contratual.

Segundo Maria Helena Diniz[5] o sistema jurídico está repleto de lacunas – lacunas normativas, ontológicas e axiológicas, o que impõe ao julgador a busca da solução para os conflitos nos princípios gerais do direito. Nesse mesmo sentido convergiu o legislador ao delinear nos arts. 4º e 5º da Lei de Introdução à Normas do Direito Brasileiro (LINDB) que, quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito, e que, na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Em visão além daquela lecionada por Maria Helena Diniz, o professor Caio Mário da Silva ensinou que, ao julgador, não era crível “instalar-se comodamente deitado na ordem estabelecida, aguardando inerte que a justiça caia do céu”, mas sim realizar, “por um perpétuo trabalho, a idéia de justiça, que se encontra em todas as leis, sem jamais esgotar-se em nenhuma delas[6].

Verifica-se, portanto, que os princípios gerais do direito não têm o condão único de suprir lacunas legais, mas de nortear todo o ordenamento jurídico, sendo fonte eterna da norma e do entendimento jurisprudencial.

Diante de todo o exposto, impõe-se a aplicação do princípio da boa-fé objetiva a toda relação contratual, adequando-se, então, ao atual entendimento legal, doutrinário e jurisprudencial.

Nesse sentido, o Enunciado nº 26 do CJF/STJ, ao analisar a aplicação do princípio da boa-fé insculpido no art. 422 do Código Civil Brasileiro, expôs: “a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes”.

Por fim, sobre os princípios gerais do direito, vale colacionar a lição da professora Judith Martins-Costa, que afirma que as cláusulas gerais têm “a função de permitir à doutrina operar a integração intra-sistemática entre as disposições contidas nas várias partes do Código Civil[7] denominada por ela de “mobilidade interna”, e a integração inter-sistemática, de modo a propiciar e facilitar a migração de conceitos e intercâmbio de valores entre as normas civis, constitucionais e as leis especiais.

Pelo exposto, compreende-se que os princípios contidos nos vários diplomas legais têm que se inter-relacionar de modo a levar a justiça social à decisões judiciais. Em outras palavras, que os princípios que regem o Código do Consumidor possam, em casos específicos e para levar justiça, nortear as decisões com fundamento no Código Civil e vice e versa.

 

 

[1] RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil – Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade. 30ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p.18.

[2] MORAIS, Ezequiel. A Boa-fé objetiva pré-contratual: deveres anexos de conduta. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 43.

[3] GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social do contrato: os novos princípios contratuais. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 117/119.

[4] MORAIS, Ezequiel. A Boa-fé objetiva pré-contratual: deveres anexos de conduta. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 53.

[5] DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 297.

[6] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reforma do direito civil. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, V.15, n. 58, out-dez 1991. p. 9.

[7] MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro (originalmente publicado na Revista dos Tribunais, RT 753/24, São Paulo, jul. 1998). In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Org.). Doutrinas essenciais de obrigações e contratos. São Paulo: Ed. RT, 2011. V. 1: obrigações: estrutura e dogmática, p. 209.